Após anunciar o seu tema para o carnaval de 2025, a Independentes de Olaria divulgou o título, logo e sinopse do seu enredo. “Vagalume: O lumiar do Rio Negro” será desenvolvido pelos carnavalescos Ariel Portes e Ester Domingos em busca do título da Série Prata, na Intendente Magalhães. O lobo forte da leopoldina prepara um desfile sobre o olhar cronista de Francisco Guimarães, o “Vagalume”, um dos raros jornalistas negros de seu tempo e principal cronista carnavalesco das ruas do Rio Antigo.
VAGALUME: O LUMIAR DO RIO NEGRO
A Reportagem da Madrugada virá adiantar àquelas que o ignoram o quadro que se descortina nesta cidade, depois que o velho bronze da torre de S. Francisco dás 12 pancadas da meia-noite. Dessa meia hora em diante, começa um novo movimento; começa a vida dos notívagos, o que, sem dúvidas, é digno de nota, pois muitos casos importantíssimos se dão desta hora em diante e que bem mereciam as honras de uma exploração de reportagem.
Viemos, portanto, preencher essa lacuna.
Todos estes fatos serão por nós esmerilhados.
Vamos lá, mãos à obra.
Rio de Janeiro, 09 de abril de 1901
Cai a noite sobre a cidade. O relógio toca. Meia-noite em ponto. Em meio ao breu, é chegada a hora de brilhar e lançar luz sobre aqueles que não tem vez. No céu, a lua reina soberana em companhia das estrelas anunciando mais uma madrugada. Por minhas andanças o Rio de Janeiro que vejo é cenário de muitas transformações e conflitos. A capital toda prosa e cheia de invencionices se reforma à moda de Paris e, para esconder suas mazelas e desigualdades, projeta requintadas ruas, praças e boulevards.
Entre a Avenida Central e a Beira Mar, vejo os flâneurs, exploradores das ruas. Nos moldes franceses, eles registram suas impressões sobre o território através de seus escritos, geralmente equivocados. Sonhando com sua própria Belle Époque, o Rio civiliza-se, mas nessa “cidade luz” tropical, nem todos são iluminados. A população pobre, de maioria negra, é colocada de lado, excluída da suposta modernidade. Mas quando essa cidade “civilizada” adormece, uma outra cidade desperta. Esse é o Rio que me interessa descortinar, onde, à luz do luar, os excluídos do dia tornam-se protagonistas da noite.
Em um período em que a negritude é cerceada dentro das páginas policiais dos jornais e pasquins, lumiar os meus é mostrar que minha gente, vista como “perigosíssima”, é o corpo e a alma dessa cidade. Seguindo meu caminhar rumo à Praça da Aclamação, vejo no Campo de Santana músicos e brincantes, com pandeiros e ganzás, tomando a rua que lhes é de direito. Baianas envoltas em pano da Costa d’África e malandros sincopados seguem o ritmo da batucada. No Paladinos da Cidade Nova e no Pingas Carnavalescos, meu povo se articula e faz carnaval fora de época. Contrariando as grandes sociedades carnavalescas da elite, tidas como respeitáveis, a negritude toma os espaços públicos e derrama toda a sua arte e a sua genialidade em forma de folia, encontrando na noite uma forma de responder com festa às opressões do dia.
Mas nem só de congraça vivem os meus. Caminhando na Praça da República, a bordo dos trens da madrugada que cruzam a Estrada de Ferro Pedro II, vejo chegar ao centro da cidade os trabalhadores que tiram da noite o seu sustento. São operários da alfândega, estivadores dos trapiches portuários e ambulantes em geral. Na famosa feira noturna da Praça XV, pescadores, padeiros e quitandeiras comercializam os seus produtos em busca do pão de cada noite. Como nem só de trabalho vive o homem, mesmo em meio à lida diária, os trabalhadores encontravam formas de lazer e diversão.
Entre o “teatro ligeiro” e os cafés cantantes, operários misturavam-se a boêmios e vadios buscando entretenimento para a vida notívaga. Mas a badalação noturna não se resume ao centro, muito pelo contrário. Ela se faz presente em todos os cantos da cidade. Basta embarcar em um desses mesmos trens da madrugada, rumo ao subúrbio, para conhecer os ritmos que embalam a noite. Seja com o samba, o forrobodó, o choro ou o maxixe, a cidade dançante extravasa ass suas mazelas em forma de arte, da Tijuca à Piedade.
Testemunho também manifestações de fé. Conheço “cabras escovados” na arte da mandingaria, vejo a ancestralidade incorporada no terreiro de Alabá, aprendo as mandingas de Sanin e os ritos e batuques de Assumano Mina. Em Ramos, me benzo com a tia Catarina, mãe de santo que vive defronte da estação. Quem não gosta de mandinga não sabe o que é bom e, vejam só que ironia, é justamente a esses mandingueiros e curandeiros que a cidade “civilizada” do dia vem pedir auxílio na calada da noite quando o calo aperta. Chefes de polícia, governantes e mandatários, todos curvados diante do axé. Seja se divertindo, trabalhando ou praticando suas crenças, a negritude da cidade encontra nas sociabilidades uma forma de resistência à opressão da cidade excludente e, caminhando entre Reportagem da Madrugada e Ecos Noturnos, eu registro tudo que vejo através de meu olhar.
Seguindo meus passos pela cidade, vejo despontar o samba. Ritmo marcadamente negro e, conforme destacam meus informantes, de origem baiana. O samba chega ao Rio junto com os migrantes da velha Bahia e assenta seu fundamento nas casas das tias baianas na região da Cidade Nova. Nos lares de Ciata, Bibiana e Amélia de Aragão, o ritmo vai se mesclando à realidade urbana carioca, ganhando novos contornos.
Feito por gente humilde, o samba cai rapidamente no gosto da cidade, chegando até as elites que prontamente passam a descaracterizá-lo. Embranquecido e industrializado, o ritmo se torna um gênero. Incorporado como retrato da identidade nacional, o samba ganha projeção mundial. Mas reparem que covardia, o samba é assimilado pela cidade, mas seus donos não. Os bambas, em sua maioria da negritude pobre e suburbana, são colocados de lado e destituídos de sua primazia.
Se no asfalto o samba fica cada vez mais branco, no morro ele segue negro com certeza. Assim, sigo caminhando e chego à favela, verdadeiro reduto de bambas. Subo o morro mais uma vez para ouvir os versos de partido alto de Sinhô e as melodias de Eduardo das Neves, saudosos companheiros e menestréis da arte de versar. Entre minha gente simples, o samba segue se renovando. Do Morro do Pinto, São Carlos e Mangueira, surgem Pixinguinha, Cartola, Donga e Ismael, novos talentos que despontam nas rodas. Os “morros academias” são hoje berços de artistas, nos quais o samba, mais do que festa, torna-se arma para superar a dor e calar a opressão da cidade.
Cá de cima, do alto do morro, em meio a “roda do samba”, olho para o céu e vejo ao longe os primeiros raios de sol que anunciam um novo dia. A noite vai chegando ao fim e com ela vão embora também os trabalhadores, brincantes e sambistas que povoam o Rio noturno. A cidade adormecida se prepara para despertar, ávida por notícias da madrugada. Munido de meus apontamos, já tenho material suficiente para a minha próxima crônica. Mais uma vez, tal como um vagalume, farei brilhar a cidade negra que poucos conhecem. Afinal, como eu digo, notívagos são apelidados vagalumes. Por isso, sejamos todos vagalumes também.
Carnavalescos, pesquisa e texto: Ariel Portes e Ester Domingos
** Este texto não necessariamente reflete, a opinião do FoliaDoSamba