“Madame Satã: Resistir para existir”
No dia em que decidiu que não iria morrer como um corpo domesticado, sua pessoa passou a (re)existir. Sua pessoa guarda muitas memórias de Glória do Goitá, como daqueles dias ensolarados no mar e nos campos, quando brincava com os três moleques que só ela conseguia ver. Três moleques, amuletos-guia, lembrando à sua pessoa tudo o que ainda é possível realizar sobre esta terra ardente, terra de todos e terra de ninguém chamada Brasil.
Sua pessoa também lembra de quando foi trocada por uma égua de nome Amorosa. E nesse momento a certeza para sua pessoa era de que, apesar de tudo, precisava enfrentar, sacudir a poeira, guiar. E sua pessoa, João, guiou, seguiu, e segue, e precisa ir, sempre. Deixem a sua pessoa passar, com o ritmo descompassado de seu flamejante corpo que protesta, que grita: “Eu não vou morrer, eu não posso parar. Eu não vou morrer, preciso continuar. Eu não vou morrer, eu preciso seguir. Eu não vou morrer! ”
Entre o aprisionamento no lar de uma Felicidade jamais presente e o duro acolhimento das calçadas das ruas da Lapa, onde, mesmo com todas as dificuldades, poderia ter liberdade para se reinventar e escolher o que era melhor para si, sua pessoa decide ser livre. Mas a liberdade, como sua pessoa bem sabia, era caríssima. Porque, para ser, era preciso se virar, carregar sacolas, vender panelas, distribuir quentinhas, servir mesas, se revirar, se remexer, aprender a se defender, conhecer a linguagem das ruas.
E é nas ruas que sua pessoa, João, se forma bicha-malandro, o respeitado Caranguejo da Praia das Virtudes, que recusa o compasso dos dias comuns e permite experimentar a magia dos acasos, em que cada beco e viela do grande centro se apresenta como a possibilidade de um desvio, uma verdadeira aventura. Mas a vida nas ruas carrega seus perigos – e sempre foi assim e sempre será: os insultos, os coiós, os bang-bangs aqui e acolá, a morte como uma iminência. Com tantos desafios e dificuldades da vivência nas ruas, sua pessoa começou a ter as experiências e trocas com os mestres da capoeira: da ginga da meia-lua de frente que pegou de Sete Coroas, ao soco martelo de sua esquerda que derrubava qualquer valente que tentava delinear fronteiras sobre um corpo que não concebia uma.
Era uma constante: da esquina, vê-se os chapeuzinhos vermelhos, guardas noturnos, cretinos e infelizes, todos procuram por sua pessoa. Mandaram avisar lá de cima que ela está dando o que falar aqui embaixo, e chamam sua pessoa para dar-lhes algumas boas bolachas. Daqui, do outro lado da margem, João manda avisar que não vai. E é assim que sua pessoa sobrevive, se garantindo na força do corpo, na habilidade das pernas, na potência dos braços, e no fio de sua pastorinha (sua navalha amiga). É desse jeito que sua pessoa se torna conhecida na região, como a bicha-malandro.
Mas sua pessoa também sonha com as noites iluminadas pela Lua prateada e cravejadas de estrelas cintilantes, que poderia ser um cenário de cabaré ou dos palcos dos teatros da Praça Tiradentes. E é lá que encarna sua diva Josephine Baker e também se traveste na sua amiga e vizinha de casebre Carmem Miranda, a Bituca. E quando as cortinas de cetim em vermelho escarlate se abrirem surgirá a sua fogosa personagem, a maravilhosa e deslumbrante Mulata do Balacochê! No mesmo palco, sua pessoa se reinventa, se transfigura e ainda encarna e nos brinda com a performance de Janacy, a rainha da floresta, e o Gato Maracajá, uma invenção, delírios e glamour da sua cabeça, e assim, juntos surgem e dançam e requebram e brilham. Deixem-na dançar, rascunhar infinitos movimentos no espaço com a impetuosidade de um vendaval. Deixem-na rebolar, requebrar, mostrar suas pernocas! Levantem, aplaudam a boneca, a bicha-malandro que não treme no salto. Hoje, todos os aplausos são para ela.
Quando chega o carnaval em 1938, sua pessoa aceita a ideia de participar do concurso de fantasias do famoso Baile dos Caçadores de Veados, lá no Teatro República, no fervo da Praça Tiradentes. Sem muito dinheiro, mas sempre muito criativa, ela confecciona a sua própria fantasia, recorta fitas douradas de caixão de defunto, reborda com lantejoulas os chifres e a capa em godê e se monta para brilhar. Sob as luzes quentíssimas da ribalta, incorpora o perigoso chupador de sangue de Glória do Goitá, o morcego Pompa. Não teve para ninguém! Sua pessoa ganhou o primeiro lugar e levou para a sua casa o prêmio valiosíssimo, um rádio Emerson e um belíssimo tapete de parede. O que ela não sabia era que depois dessa noite, através de um delegado de polícia, sua pessoa viraria mito, lenda e legenda. Imortalizada pelo nome de guerra, passa a ser reconhecida, a princípio, a contragosto, como a famosíssima Madame Satã.
Querida das cafetinas dos bordéis e casas de tolerância, temida pelos rufiões e exploradores da boemía, a bicha transita com sinal aberto por todos os rendez-vous quentes do Centro do Rio de Janeiro. Sempre muito bem-vestida: chapéu de Panamá de custo alto, camisa de seda importada que nenhuma navalha conseguia cortar, calça de linho apurado de bom malandro, sapato carrapeta bicolor sob encomenda, cabelos esticados no vapor e as sobrancelhas sempre muito bem feitas. Era puro chique e elegância. E mesmo quem nunca a viu varando a Mem de Sá sabe: com Satã não se brinca! Ela porta sua navalha afiada e está sempre pronta para uma boa briga, a fim de defender a honra de seu corpo bicha-malandro: é melhor tomarem cuidado, com Satã não se brinca! E quem quiser colocá-la na mira de sua bala e tentar fechar o seu fino paletó branco, vai ter que ter muita ginga. É melhor avisar: com Satã não se brinca!
O tempo chega e o apagamento atinge sua pessoa, e a Madame já não está mais tão comentada pelas ruas da sua Lapa. Mas quem disse que bicha morre? Vira capa de revista, volta à cena e encena no palco hipócrita da sociedade, o mesmo que sua pessoa sempre encarou. Afinal de contas: quem tem medo de Madame Satã? No alto das coberturas dos prédios da Zona Sul, nos bares e nos bate-papos dos intelectuais burgueses, sua pessoa volta a virar notícia. Suas histórias, crônicas e causos viram um burburinho nas bocas e ouvidos de Marias e Clarisses numa época de repressão e perseguição política. Satã é glorificada ainda encarnado.
E mesmo depois que seu corpo não transita mais por essas terras, depois que seu esqueleto diabólico é acolhido pelos anjos do inferno, a sua pessoa ainda se faz lenda e legenda. Seu nome rompe a arte careta, se materializa como contracultura, como um Brasil que grita para ser ouvido. Satã, analfabeta, preta, nordestina e bicha é assunto, é burburinho, é discurso político, é tema de enredo de escola de samba no carnaval. Ela não morreu, ela nunca vai morrer!
Satã, fina e leve como a ponta de sua pastorinha, agora corta as ruas da Lapa em direção à Marquês de Sapucaí, passando pelas encruzilhadas do seu caminho. Neste cortejo, sua pessoa é o ponto de referência aos que lutam contra as políticas de morte e silenciamento. Satã e suas entidades, extensão de seu corpo-infinito, máquina de guerra, baixarão no Terreiro Lins Imperial. Podem entrar, Satã das Encruzilhadas, Maria Satã das Catacumbas, Cabocla Janacy Rainha da Floresta, Boiadeiro Gato Maracajá, Mariazinha do Balacochê!
Satã, risonha, serpenteando sobre o asfalto, tira o chapéu e saúda os seus, que saem dos becos e ruelas para vê-la passar. Salve o povo de rua! Salve as bonecas, as prostitutas, os vadios, os mendigos, os catadores, os vagabundos, os foliões e a todos os corpos encantados que resistem para poder existir!
Não Vamos Morrer! (Ventura Profana)
Em homenagem às corpas que deixaram de existir pela violência do homem, em especial à Mateusa Passarelli, que ainda existe entre nós: Precisamos resistir para existir!
Ao querido Sérgio Farias, artista que idealizou o primeiro desfile em homenagem à Madame Satã para o carnaval de 1990.
A todos os componentes da S.R.E.S Lins Imperial, que há 60 anos resistem como escola de samba e celeiro de bambas!
Texto (concepção, pesquisa e elaboração): Igor Damasio
Colaboração (pesquisa, revisão textual e conceitual): Edu Gonçalves, Igor Damasio, Mateus Pranto e Raphael Homem.
Carnavalescos: Edu Gonçalves e Ray Menezes.
Referências:
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Routledge: New York & London, 1993
CABRAL, Sérgio et. al. “Madame Satã”, O Pasquim, n. 95, 29 de abril até 5 de maio de 1971
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MACHADO, Elmar. “Madame Satã para O Pasquim: ‘Enquanto eu viver, a Lapa viverá’”. Pasquim, n. 357, 30 de abril de 1976
PAEZZO, Sylvan. Memórias de Madame Satã: conforme narração de Sylvan Paezzo. Rio de Janeiro: Lidador, 1972
PROFANA, Ventura. Não vou morrer. São Paulo: Tratore (Gravadora), 2020. 4:11 min.
RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
ROCHA, Gilmar. “Navalha não corta seda”: Estética e Performance no Vestuário do Malandro. 2005.
RODRIGUES, Geisa. As múltiplas faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo.
Niterói: Editora da UFF, 2013.
SIMAS, Luiz Antonio, RUFINO, Luiz e HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: uma filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
** Este texto não necessariamente reflete, a opinião do FoliaDoSamba